O convite para a cabine de imprensa do filme "Meu amigo Hindu" chamou a minha atenção porque Willem Dafoe estaria lá. A gente olha para o ator internacional e pensa: uau! Será que o cara existe mesmo? E existe. Magrelo, com os olhos saltados para fora do rosto magro e a arcada dentária quase gritando e desproporcional ao queixo. Dafoe existe. Mas, naquele dia, não foi ele quem chamou a minha atenção.
O diretor Hector Babenco chegou na sala cambaleando em passos vagarosos, o braço apoiado no ombro da esposa Bárbara Paz. Baixo, careca e um pouco fora do peso. Na minha cabeça, vinha uma vaga lembrança do Tio Chico, da Família Addams. Eles chegaram depois do filme e a questão era: até que ponto o protagonista de "Meu amigo Hindu" era baseado na vida real do diretor?
O protagonista Diego (Willem Dafoe) é um cineasta (assim como Babenco) diagnosticado com câncer terminal (assim como Babenco). A doença faz com que as relações de Diego com as pessoas ao redor, inclusive a sua esposa e o seu irmão, fiquem complicadas. A única pessoa que suporta Diego nessas condições é um garotinho hindu de apenas oito anos, que também está internado no hospital fazendo quimioterapia. O menino pede para que Diego conte histórias e, juntos, eles embarcam na imaginação do cineasta.
A verdade é que, no fim das contas, "Meu amigo Hindu" nem é um filme tão bom assim. Senti as pálpebras pesarem em alguns instantes e o desinteresse tomou conta de mim em outros. Embora todos os atores secundários sejam brasileiros, todos eles falam em inglês para acompanhar o Dafoe. E não são quaisquer atores não, são a "nata" do cinema nacional. Selton Mello, Guilherme Weber, Maria Fernanda Cândido, Reynaldo Gianecchini, entre outros. Até a Bárbara Paz aparece no final, interpretando Sofia "Guerra" e se apaixonando pelo protagonista - ah, quase esqueci desse comentário! Isso aconteceu assim como aconteceu com Babenco.
Essa pergunta não tardou na coletiva de imprensa. Um homem levantou na terceira fileira do cinema e, depois de se exibir com vários comentários técnicos sobre o filme (da quarta fileira, notei Babenco revirando os olhos), ele levantou a questão que os jornalistas discutiam enquanto devoraram seus pães de queijo cedidos pela Globo Filmes no intervalo entre a exibição do filme e a coletiva. "E aí, até que ponto a sua história pessoal está neste filme?". É claro que o homem usou palavras mais rebuscadas, essa é praticamente uma exigência.
O sotaque argentino arrastado de Babenco tomou o microfone: "Não pretendo dirigir meu obituário". O jornalista até sentou. Aí, entre frases e outras, o diretor explicou que vários aspectos do filme originavam-se da realidade e de suas vivências. Mas, de qualquer maneira, ele jamais diria que "Meu amigo Hindu" era uma autobiografia.
Depois da coletiva, peguei um taxi para o hotel Renaissance, onde aconteceriam as entrevistas individuais. Guilherme Weber e Maria Fernanda Cândido foram os primeiros a falarem sobre o filme e seus personagens. Ela interpreta e ex-esposa do protagonista, que passa por inúmeras dificuldades ao acompanhá-lo com a sua doença. Weber é o irmão, que também confronta o protagonista inúmeras vezes. Ambos os personagens estão na corda bamba entre a liberdade e a culpa por deixar Diego de lado.
Bárbara e Babenco chegaram logo depois. Ele ainda caminhava com a mão no ombro dela, que trajava um terninho feminino branco e exibia o sorriso carnudo para todos os lados. Bárbara olhou para mim e disse: "Preciso passar maquiagem. Minha cara tá toda cagada". E esse foi o mais longe que eu e Bárbara Paz já chegamos.
O casal sentou-se em dois banquinhos altos, de costas para o backdrop com a logomarca do filme e de frente para o banquinho que receberia o rodízio de jornalistas. Cada um tinha cinco minutos para conversar com o diretor e a atriz. Cinco minutos. Nada além disso. Babenco perguntava para Bárbara antes de cada entrevista: "É só cinco minutos, né?".
Mas ele sempre acabava passando do tempo. Ele mesmo, não o coitado do jornalista que tremia na base com medo de atrasar e levar um esporro. Falava sobre seus filmes antigos, falava sobre sua história com o roteiro de "Meu Amigo Hindu", falava sobre seu câncer, falava sobre Bárbara, falava sobre cinema, falava sobre Santa Catarina - seu estado preferido, porque, segundo ele, as pessoas mais inteligentes vêm de lá.
A minha vez de sentar no banquinho não aconteceu. Somente aqueles que tinham algum veículo audiovisual poderiam gravar as entrevistas (naquela semana, o Cinema com Rafa era apenas um embrião). Participei de todas as entrevistas indiretamente, sentado na cadeira preta estofada ao lado. Ouvindo as perguntas e as respostas ríspidas. Babenco viajava nas respostas e Bárbara, algumas vezes, tentava consertá-las.
De certa forma, era como se ele não estivesse ali. Era como se, a cada pergunta, Babenco desse a mão para um garotinho hindu de oito anos e embarcasse num mundo de imaginação. O ponto alto foi quando um dos repórteres questionou Babenco como ele se apaixonou por filmes. Direto ao ponto e sem enrolação, ele cuspiu as palavras: "porque eu descobri que dentro do cinema ninguém enche meu saco".
Um dos últimos jornalistas perguntou para Babenco "o que significa o amigo hindu". Ele riu, os "ha ha ha" pausados entre si. Aliviado, olhou para Bárbara e disse: "achei que ninguém fosse perguntar". Babenco disse que o amigo hindu varia de pessoa para pessoa. Mas, se ele tivesse que definir, seria "alguém para quem queremos contar histórias".
Ele foi embora logo em seguida e eu também. No trânsito da Brigadeiro Luís Antônio, enquanto brigava para me segurar no ônibus, pensei nos meus amigos hindus. Quando Babenco morreu - poucos meses depois - lembrei das frases e dos momentos que marcaram aquele dia. Depois de contar muitas histórias, Babenco nos deixou para viver sozinho em uma sala de cinema da outra dimensão. Onde ninguém vai encher o saco.
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